Comunardo Niccolai. Trata-se de um belo nome, não? Trata-se, também, de um dos zagueiros mais importantes da história do Cagliari. Nascido em Uzzano, pequeno município na região montanhosa da Toscana, é filho de Neida e Lorenzo, ex-goleiro do Livorno nos anos 1920 e militante na luta antifascista. O nome Comunardo, inclusive, é uma homenagem à Comuna de Paris, grupo composto por proletários que, durante a primavera de 1871, governou a França por algumas semanas.
Em sua carreira, Niccolai demonstrou uma certa tendência a marcar gols contra, razão esta que originou a alcunha de “Rei dos Gols Contra”. Ao todo, feriu seis vezes o próprio patrimônio, o que lhe rendeu uma aura entre o jocoso e o cultuado, mesmo que outros jogadores tenham lhe superado no quesito, como Riccardo Ferri e Franco Baresi, autores de oito. A questão é que Comunardo os fazia de maneira singular, quase artística.
Chegada à ilha
Na adolescência, Niccolai representou o Montecatini, da Toscana, e lá recebeu o apelido de “agonia” em razão do biotipo, bem magro e destoante do padrão atlético da posição de zagueiro. Aos 16 anos, desembarcou para atuar na Sardenha. O pontapé inicial da aventura e da carreira profissional do jogador ocorreu na cidade de Sassari, na modesta Torres, que disputava a Serie C.
Ele tinha sido observado e indicado pelo olheiro Dino Incerpi. Anteriormente, realizara um teste no Bologna e, a princípio, tudo estava encaminhado para que ele jogasse no time da Emília-Romanha, mas seus exames médicos apontaram um pequeno problema cardíaco e o negócio não foi adiante. Niccolai chegou a dizer que não era nada demais e que nunca teve qualquer tipo de enfermidade relacionada à dita anomalia no coração. Na Torres, fez todas as baterias novamente e foi constatado que ele estava perfeitamente apto para atuar profissionalmente.
O jovem zagueiro estreou oficialmente em 1963 e jogou na Torres por uma temporada, destacando-se nas 22 partidas que atuou. O bom rendimento o tirou dos turritani, mas não do território sardo, e ele foi anunciado como novo reforço do Cagliari – que acabara de garantir acesso à primeira divisão e estava em processo de montagem para a Serie A. Os rossoblù, treinados por Arturo Silvestri, tiveram excelente desempenho e terminaram em sétimo, dando a impressão de que seriam capazes de algo mais.
A estreia de Niccolai na Serie A aconteceu em maio de 1966, em jogo fora de casa contra o Vicenza; o resultado final foi um empate em 1 a 1. O Cagliari terminou aquele campeonato na 11ª colocação. Os dois anos seguintes foram de consolidação para o zagueiro, que ajudou o time a fazer boas campanhas: quarto lugar, em 1965-66, e nono, em 1966-67. Na preparação para a época 1967-68, o clube viajou para os Estados Unidos para participar de um torneio organizado pela United Soccer Organization – instituição reconhecida pela Fifa. Rebatizados como Chicago Mustangs, os sardos terminaram o certame na América do Norte com o terceiro lugar na Divisão Oeste. Os casteddu ocupam o grupo dos pioneiros no futebol italiano neste tipo de excursão de pré-temporada.
O destaque da Serie A 1967-68, vencida pelo Milan, ficou por conta de um duelo contra a Fiorentina, cujo goleiro era Enrico Albertosi, futuro camisa 1 do Cagliari. Os dois times ocupavam o meio da tabela – a equipe de Florença tinha dois pontos a mais – e o 0 a 0 persistiu no placar até os 25 minutos da etapa complementar, quando a Viola saiu na frente graças a um gol contra do brasileiro Nenê. Niccolai, que não tardaria ser apelidado de Rei ou Artista dos Gols Contra, foi quem anotou o tento da virada, sete minutos após Francesco Rizzo ter igualado o marcador; Gerry Hitchens deu números finais ao triunfo rossoblù por 3 a 1.
A temporada 1968-69 marcou a entrada definitiva de Niccolai no time titular do treinador Manlio Scopigno, que ia para o seu terceiro ano à frente da equipe sarda. Quem se beneficiou com esta mudança foi o Cagliari, que teve o seu melhor desempenho na Serie A até aquele momento, terminando com o vice-campeonato ao lado do Milan (ambos com 41 pontos), e a quatro pontos da campeã (e quase imbatível) Fiorentina. Luigi Riva, ícone rossoblù, foi o goleador máximo, com 20 tentos.
Scudetto, gols contra e a Copa do Mundo
O ano seguinte reservou grandes momentos tanto para Niccolai quanto para o Cagliari. Na Serie A, os rossoblù tiveram um início animador, com quatro vitórias nas cinco primeiras rodadas: empate contra a Sampdoria (0 a 0) e triunfos sobre Vicenza (2 a 1), Brescia (2 a 0), Lazio (1 a 0) e Fiorentina (1 a 0). Os gols da dupla formada por Gigi Riva e Angelo Domenghini, somados à solidez do setor defensivo, eram as maiores forças do lado sardo. Em seguida, empate em casa contra a Inter (1 a 1), dois pontos na bagagem diante do Napoli (2 a 0) e vitória pelo placar mínimo contra a Roma.
O Cagliari teve um curto momento de instabilidade, e Scopigno chegou a ser suspenso pelo restante da temporada por ter ofendido um bandeirinha em visita a Palermo, mas conseguiu o título simbólico de campeão de inverno ao bater o Torino por 2 a 0. Niccolai era sinônimo de segurança e os rossoblù, embalados pelo bom momento, mantiveram a sequência positiva por seis rodadas, até sofrerem um revés diante da Inter, no San Siro, com direito a lei do ex – Roberto Boninsegna foi o autor do gol nerazzurro.
A fama de Rei dos Gols Contra nasceu na 24ª rodada, em partida contra a Juventus, que estava dois pontos atrás na tabela de classificação. Chovia muito naquela tarde em Turim. Com a bola rolando ou parando nas poças d’água no pesado gramado, a Velha Senhora subiu para o ataque através de Helmut Haller, que lançou para Giuseppe Furino, aberto no lado direito. O capitão bianconero cruzou, buscando a cabeça de Gianfranco Zigoni, Niccolai se antecipou sem perceber que Albertosi também estava saindo e acabou desviando a bola para trás, matando o goleiro rossoblù, que ficou com as mãos estendidas, sem entender o que tinha ocorrido – vide a imagem que abre o texto.
Para sua sorte, e do Cagliari, a partida terminou empatada em 2 a 2, graças à doppietta de Riva. A título de curiosidade, o jogo foi gravado somente até o fim do primeiro tempo. Isso porque, ao início da segunda etapa, uma greve repentina da RAI escureceu as imagens da transmissão.
Scopigno, fumante compulsivo, estava suspenso e assistia ao confronto das arquibancadas do Comunale – atual Olímpico Grande Torino. No lance do gol contra, exclamou, ironicamente, “belo gol”, enquanto se camuflava em meio à fumaça de um de seus incontáveis cigarros. De certa forma, o filósofo observou a veia artística de Niccolai.
Restando seis rodadas para o término da Serie A, o Cagliari continuou contando com os tentos de Riva e com a força de sua defesa. A Juventus, concorrente na disputa pelo scudetto, andou tropeçando e deixou o caminho pavimentado para os rossoblù. A confirmação do inédito e histórico título veio na 28ª jornada, em vitória por 2 a 0 sobre o Bari; Riva abriu o placar e Sergio Gori sacramentou a glória sarda. O gol contra marcado ante a Juventus ajudou a gerar uma errônea impressão de que Niccolai fosse um mau defensor. Os números dele, todavia, dizem o contrário. O zagueiro esteve em campo em 2.545 de um total de 2.700 minutos possíveis na campanha, que culminou com uma estatística impressionante: foram apenas 11 gols sofridos, um recorde que perdura até os dias de hoje.
O DNA do mais novo campeão passava por alguns nomes. A construção das jogadas tinha início na linha de retaguarda, mas Niccolai pouco participava deste momento; Scopigno não lhe dava muita liberdade e era raro vê-lo ultrapassar a faixa intermediária. Pierluigi Cera, após lesão de Giuseppe Tomasini, passou a se destacar na saída de bola. Ricciotti Greatti era o elo entre meio e ataque, e Nenê, incansável, tinha o hábito de recompor e ajudar a defesa; Riva era uma potência no terço final do campo.
Era o auge da carreira de Niccolai. E para coroar o tão especial momento, algumas semanas depois da conquista do scudetto, Ferruccio Valcareggi, treinador da Squadra Azzurra, anunciou a lista final para a Copa do Mundo, no México. A base da Nazionale era composta por seis jogadores do Cagliari. Eram eles: Albertosi, Cera, Domenghini, Gori, Riva e ele, Comunardo Niccolai, que havia estreado pela seleção, e agradado o técnico, em maio daquele ano, em amistoso contra Portugal – triunfo italiano por 2 a 1. Um dos concorrentes do calharitano para uma das vagas na zaga era o veterano Sandro Salvadore, que atuava na Juventus e tinha participado das Copas de 1962 e 1966. E a ironia é que Salvadore fez dois gols contra em um amistoso preparatório contra a Espanha, e nunca mais tornou a ser convocado.
O sonho de representar o país na principal competição do futebol durou pouco mais de meia hora – 37 minutos, para ser mais preciso. Escalado como titular na partida inicial, contra a Suécia, Niccolai sofreu entrada dura de Ove Kindvall, que foi com tudo nos tornozelos do italiano. O zagueiro do Cagliari geralmente tomava um cuidado especial com essas articulações, consideradas frágeis, e sempre os enfaixava, mas a lesão o tirou do Mundial. Roberto Rosato, do Milan, foi o substituto e ajudou a Itália a ficar com o vice-campeonato.
Últimos anos
O campeão Cagliari iniciou a nova temporada com uma novidade. Em setembro, dias antes do início da Serie A, foi inaugurado o estádio Sant’Elia. Um mês depois, a torcida rossoblù presenciou um gol de Niccolai, a favor. Foi contra o recém-promovido Varese, que abrira o placar com Italo Bonatti e viu o zagueiro do time da casa anotar o dele para deixar tudo igual. Com o empate, os casteddu ocuparam a liderança de forma provisória. A equipe sarda esteve entre os três primeiros colocados até a 14ª rodada, quando foi goleada no Sant’Elia pelo Milan (4 a 0). O bom início, que fez todos sonharem com um possível segundo título, deu lugar a uma campanha irregular e a formação da Sardenha fechou a Serie A na sétima posição. Na Copa dos Campeões, pararam nas oitavas de final ao serem eliminados para o Atlético de Madrid; na primeira fase, passaram pelo Saint-Étienne.
Diferentemente dos anos anteriores, o Cagliari começou a Serie A com dificuldades e, nos seis primeiros compromissos, obteve duas vitórias, dois empates e duas derrotas. Aquele foi o campeonato que alçou de vez Niccolai ao posto de Rei dos Gols Contra. Mesmo que o principal lance não tenha sido propriamente um “autogol”. Vamos por partes: apesar do primeiro turno irregular, os rossoblù se mantiveram no G4. O roteiro foi semelhante no returno, mas, em nível pessoal, Comunardo experimentou alguns dissabores.
Na 22ª rodada, os sardos visitaram a Calábria para um jogo contra o Catanzaro, que abria a zona de rebaixamento. O estádio Nicola Ceravolo contou com um público acima do normal naquele dia e o árbitro Concetto Lo Bello estava dirigindo sua 300ª partida na Serie A – apitou, ao todo, 328 vezes, recorde que detém até hoje em dia. No campo, os rossoblù venciam por 2 a 1 até os 45 do segundo tempo e os donos da casa tentavam sua última investida ao ataque.
O ala Alberto Spelta invadiu a área e foi derrubado por Tomasini, mas Lo Bello nada marcou; os anfitriões tentavam a qualquer custo cavar um pênalti. A questão é que Niccolai pensou ter ouvido um apito, provavelmente vindo da arquibancada, e chutou a bola com raiva em direção ao próprio gol, como se protestasse. O meia-atacante Mario Brugnera, em gesto desesperado, mergulhou e desviou o arremate com as mãos. Não tinha jeito, e Lo Bello assinalou a penalidade. Spelta converteu, selando o empate.
Quatro rodadas depois, fora de casa contra o Bologna, com o placar indicando 1 a 1, Niccolai tentou cortar um cruzamento e, ao dominar, acabou driblando o goleiro Albertosi, que se posicionava para aparar a bola. A derrota não abalou a confiança do zagueiro, que ajudou o time a emendar quatro vitórias em uma dura sequência envolvendo Roma, Inter, Fiorentina e Vicenza – este último brigando contra a queda. Foi uma resposta contundente que mostrou a força mental de Comunardo. O Cagliari fechou a Serie A da mesma forma que terminou o primeiro turno, na quarta colocação e com a vaga garantida na Copa Uefa.
A empolgação deu lugar a um choque de realidade. Um oitavo lugar na Serie A e a eliminação na primeira fase da Copa Uefa para o Olympiacos frearam qualquer ambição do Cagliari. A tônica foi similar nos dois anos posteriores – 10º lugar, em ambos –, com exceção de uma fase artilheira, em março de 1975: no dia 2, novamente com o Bologna em seu caminho, ele igualou o placar em um momento em que o adversário vencia com gol de Giuseppe Savoldi. Duas semanas depois, voltou a marcar, contra a Lazio.
O último capítulo de Niccolai vestindo a camisa do Cagliari foi a temporada 1975-76. Deu tudo errado para o time, que naufragou ao longo das rodadas até ser rebaixado. Para o zagueiro, o episódio mais desagradável foi um novo gol contra marcado, desta vez em chocolate aplicado pelo Perugia (4 a 1), fora de casa.
A queda fez com que o elenco rossoblù sofresse alterações. Uma delas foi a partida de Niccolai, prestes a completar 30 anos de idade, que deixou a Sardenha e se transferiu para o Perugia. O zagueiro permaneceu uma temporada no time comandado por Ilario Castagner, mas só atuou 11 vezes – ainda assim, deu um pequena contribuição para o bom desempenho da equipe biancorossa, sexta colocada da Serie A. O último clube na carreira do defensor foi o Prato, que disputava a Serie C. No retorno à Toscana, as coisas não deram certo e os lanieri foram rebaixados à Serie C2. Aos 32, Comunardo anunciou que estava pendurando as chuteiras.
Como outros tantos, Niccolai optou por seguir no futebol e se tornou treinador. À beira do campo, assumiu o pequeno Savoia em uma breve passagem. Depois, treinou as categorias de base da Azzurra – sub-16 e posteriormente sub-18. Em 1993, foi anunciado como comandante da seleção italiana feminina, cargo que ocupou durante um ano. O último trabalho do ex-zagueiro foi o de observador da Nazionale. Niccolai faleceria em 2024, aos 77 anos.
Bem antes disso, em 2009, um episódio curioso chamou a atenção para Comunardo. Depois de uma partida entre Itália e Geórgia, válida pelas Eliminatórias para a Copa na África do Sul, o zagueiro Kakhaber Kaladze, que defendia o Milan, marcou dois gols contra bizarros e ouviu do próprio Niccolai: “Obrigado, Kaladze, agora não vamos mais falar apenas de mim quando houver gol contra”.
Rótulos são difíceis de serem retirados. Ainda mais quando você se torna uma espécie de parâmetro, a ponto de, em meio a uma crise do governo italiano, Francesco Storace, político de extrema direita, dizer que o esquerdista Massimo D’Alema, então primeiro-ministro, havia marcado um gol contra “ao estilo Niccolai”.
O ex-zagueiro merecia ser lembrado não apenas por conta dos gols contra, mas também pelo scudetto vencido, pela convocação à Copa do Mundo e pelo jogo limpo. Quando expulso, os motivos quase nunca eram relacionados a uma conduta antidesportiva ou a atitudes violentas. O cartão vermelho geralmente lhe era dado por algum protesto mais acalorado, como certa vez em Verona, quando ele reclamou de um toque de mão do brasileiro Sergio Clerici, que teria subido para disputar um cruzamento de forma irregular. A arbitragem nada marcou e, após uma reclamação mais dura, Niccolai foi mandado para o chuveiro mais cedo após ter dito “vamos ver quem está certo esta noite, quando a TV passar o lance em câmera lenta”, e levou um gancho de três partidas. A exclusão, por ironia, mostrava que Comunardo tinha veia artística em outras searas e não só na hora de ferir o seu próprio patrimônio.
Comunardo Niccolai
Nascimento: 15 de dezembro de 1946, em Uzzano, Itália
Morte: 2 de julho de 2024, em Pistóia, Itália
Posição: zagueiro
Clubes: Torres (1963-64), Cagliari (1964-67 e 1967-76), Chicago Mustangs (1967), Perugia (1976-77) e Prato (1977-78)
Título: Serie A (1970)
Carreira como treinador: Savoia (1980-81), Itália Sub-16 (1983-89), Itália Sub-18 (1987-88) e Itália Feminina (1993-94)
Seleção italiana: 3 jogos