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Gabriel Paletta foi promessa da Argentina, mas jogou Copa do Mundo pela Itália

Quem acompanha de perto o futebol da Itália sabe que é antiga a utilização de descendentes de pessoas nascidas no Belpaese por parte da seleção. Mateo Retegui e Jorginho, atualmente, Thiago Motta e Mauro Camoranesi, há alguns anos, são representantes da diáspora italiana, que emplacou o seu primeiro filho na Nazionale em 1914, quando Eugenio Mosso, nascido na Argentina, vestiu azul Savóia. Tendo a mesma naturalidade do pioneiro, o zagueiro Gabriel Paletta foi mais longe: teve a oportunidade de jogar pelos albicelestes ao lado de Lionel Messi e, posteriormente, defender a Squadra Azzurra numa Copa do Mundo.

Natural da Argentina, mais precisamente de Longchamps, uma fração da província de Buenos Aires, Paletta pode seguir esse caminho por ter raízes italianas bem definidas: seu bisavô, Vincenzo, nasceu na Calábria e emigrou para a América do Sul no início do século XX. Nascido em 1986, Gabriel deu início a sua jornada futebolística ainda garotinho, na equipe amadora Esperanza. Aos 10 anos, ingressou nas categorias de base do Banfield e deu continuidade à carreira. Curiosamente, seus três outros irmãos também se vincularam ao esporte, mas em outras funções – Héctor é árbitro; Ariel, roupeiro; e Daniel, preparador físico.

“Aos 10 anos, eu e cinco amigos nos inscrevemos para a peneira do Banfield, e todos nós fomos selecionados. Os outros acabaram desistindo, pois treinávamos a vários quilômetros de distância, mas eu continuei com o apoio dos meus pais, que me acompanhavam todos os dias. Pude recompensá-los com o primeiro dinheiro que ganhei, como prêmio por vencer um campeonato juvenil. E, aos 18, quando assinei meu primeiro contrato profissional, recebia um salário anual de 10 mil pesos”, relatou ao jornal La Repubblica, em 2014.

Em 2005, o beque foi alçado ao time profissional. Quando o Banfield garantiu vaga nas fases eliminatórias da Copa Libertadores, a comissão técnica alterou as inscrições para incluir Paletta e imediatamente colocá-lo em ação contra o Independiente Medellín. El Taladro seguiu adiante e o defensor mostrou solidez, porém não teve mais chances de atuar no torneio. O motivo, entretanto, era positivo. Ao lado dos jovens Sergio Agüero, Lucas Biglia, Pablo Zabaleta, Fernando Gago e Messi, ele foi convocado para o Mundial Sub-20.

Titular em todos os sete jogos, sem nunca ter sido substituído, Paletta contribuiu de forma indiscutível para a vitoriosa campanha da Albiceleste. À medida que Messi brilhava na frente, o zagueiro entregou estabilidade defensiva, de modo que a Argentina sofreu apenas uma derrota, na partida de estreia, contra os Estados Unidos. Posteriormente, os portenhos superariam o Brasil nas semifinais e a Nigéria, na decisão.

O rendimento de Paletta se manteve na temporada seguinte, na qual se tornou intocável no miolo de zaga do Banfield. Sua curva ascendente, em comparação à pouca idade, chamou a atenção dos clubes europeus. Recém-campeão europeu, o Liverpool era uma escolha óbvia. O clube inglês desembolsou um cheque de 2,5 milhões de euros para levá-lo a Anfield por quatro anos. Gabriel se tornou o segundo jogador argentino da história dos Reds, depois de Mauricio Pellegrino.

Paletta se consolidou no Parma graças a boas atuações e presença marcante também no ataque (Getty)

“Paletta é muito duro e é exatamente o tipo de jogador de que precisávamos. Creio que se dará bem na Premier League. Eu trabalhei com zagueiros argentinos no Valencia: Paletta se assemelha mais a Roberto Ayala do que a Mauricio Pellegrino. Se compararmos com o Liverpool, ele se parece mais com Jamie Carragher do que com Sami Hyypiä. Isso é bom, pois assim temos um certo equilíbrio no estilo dos defensores”, comentou o técnico Rafa Benítez, na época.

Mas as coisas não seguiram o planejado. Depois de um ano e somente oito participações, Paletta embarcou no avião que o levou de volta para casa. Ele assinou com o Boca Juniors. “Tudo aconteceu muito rápido. Eu havia chegado ao topo do mundo com Messi, e tínhamos vencido adversários como [Fernando] Llorente, [Cesc] Fàbregas, David Silva, [Joel] Obi Mikel, [Fredy] Guarín, [Radamel] Falcao García, Diego. Benítez me notou e me queria na Inglaterra: ele tinha ganhado a Liga dos Campeões, o time era muito forte. Ele me elogiava bastante, mas eu nunca jogava”, lamentou na entrevista ao Repubblica.

O Boca também foi uma escolha simples, e, embora atualmente reconheça que agiu de forma precipitada, Paletta entende que as circunstâncias o levaram a tomar essa decisão. “Eu fiquei cansado, voltei para casa, havia o Boca… Como recusar? La Bombonera, as canções da ‘La 12’: um sonho para mim. Só hoje admito que deveria ter tido mais paciência, mas no Liverpool eu me sentia mal, estava sozinho, só me lembro do frio: em um ano, nunca jantei com um companheiro”, desabafou ao jornal.

Nas cores xeneizes, o zagueiro disputou a final do Mundial de Clubes contra o Milan, em 2007, mas não acompanhou os passos de Kaká em noite inspirada. O brasileiro comandou a vitória por 4 a 2 em cima dos argentinos. Também não teve sorte diante do Fluminense, que eliminou o Boca nas semifinais da Libertadores, em 2008. No mesmo ano, ele rompeu os ligamentos do joelho direito e ficou afastado das atividades durante seis meses. Pouco antes, Paletta participou do título da Recopa Sul-Americana, mas não atuou nas rodadas decisivas do Apertura, conquistado pelos boquenses.

O defensor permaneceu na Argentina por mais um ano, antes de receber uma nova ligação de número internacional. Do outro lado da linha, o Palermo mostrou interesse em contar com o jogador na temporada 2009-10. Era a chance de Paletta fazer o caminho oposto do seu bisavô. As partes encaminharam o acerto, mas o acordo foi desfeito. O clube rosanero alegou que os xeneizes descumpriram o trato. “Fizemos uma oferta que incluía os impostos e taxas a serem aplicados à transferência, enquanto o Boca estava convencido de que era uma oferta ‘antes dos impostos’ e queria 24% a mais”, afirmou o diretor de futebol Walter Sabatini.

Em sua frutífera carreira na Serie A, o ítalo-argentino obteve maior destaque com a camisa do Parma – e, por isso, chegou à seleção (Getty)

Paletta, por sua vez, dá outra versão. Segundo ele, o clube siciliano recuou após incertezas da comissão técnica sobre suas condições físicas. “Eu tinha assinado com o Palermo. Nas visitas eles não estavam convencidos sobre o meu joelho, queriam me operar novamente, eu disse adeus”. Em julho, o beque fechou contrato em caráter permanente com o Parma por 2,5 milhões de euros. “Me senti imediatamente em casa”, declarou ao Repubblica.

Foi na Emília-Romanha que o zagueiro atravessou a melhor fase da sua carreira – foi por lá também que ficou célebre a sua vã tentativa de esconder uma calvície cada vez mais proeminente debaixo de uma vasta cabeleira. O careca cabeludo chegou a um Parma que frequentara a segunda divisão pouco antes e que, em 2009-10, comandado por Francesco Guidolin, havia ficado na oitava posição da Serie A.

Na época, o comando já havia passado para Pasquale Marino, que não conseguiria imprimir consistência ao time e, por isso, daria lugar a Franco Colomba. O primeiro ano de Paletta com a camisa crociata foi delicado, já que o Parma brigou muito para não cair e só foi respirar na reta final da Serie A. O ataque, muito dependente de Hernán Crespo, Amauri e Sebastian Giovinco, teve dificuldades de engrenar e foi a defesa – uma das 10 melhores da competição – que manteve os emilianos em condições de permanecerem fora da zona de rebaixamento nos momentos mais complicados.

Após o 12º lugar na Serie A, Paletta foi ainda mais importante em 2011-12, quando o Parma ganhou força no meio da competição, graças à troca de Colomba por Roberto Donadoni – e terminou no oitavo posto. O ítalo-argentino, que já cativara rapidamente a torcida giallobù pela garra em campo, se consolidou como zagueiro central no 3-5-2 e, além de ter sido um dos pilares dos ducali, marcou presença com quatro gols anotados a partir de jogadas de bola aérea.

Com Donadoni, o Parma se transformou num dos times mais consistentes da Itália em termos defensivos – e parte disso foi mérito de Paletta. Hábil para atuar em linhas de três ou quatro na retaguarda, o beque foi um dos jogadores com melhor índice de roubadas de bola da Serie A em 2012-13, ocasião em que os crociati ficaram na 10ª posição.

Paletta teve duas passagens por um Milan que se equilibrava numa linha tênue para fugir da mediocridade (Getty)

Em 2013-14, o zagueiro sofreu uma inflamação no tendão de Aquiles logo nos primeiros momentos da trajetória do Parma e chegou a ficar mais de três meses no estaleiro. De volta aos campos a partir de novembro de 2013, Paletta contribuiu ativamente para que os crociati tivessem a sexta melhor defesa da Serie A e conseguissem o sexto posto no campeonato – que só não resultou em vaga na Liga Europa porque a Uefa não concedeu a licença ao clube por falta de pagamento de impostos.

A personalidade e a consistência de suas performances também capturam a atenção do técnico da seleção, Cesare Prandelli, que vislumbrou um futuro para ele na Squadra Azzurra. Apesar do título no Mundial Sub-20, Paletta nunca foi convocado para a equipe nacional principal argentina. A origem calabresa da família o levou a tomar uma decisão significativa: entre o azul mais claro da Albiceleste e o intenso da Nazionale, o defensor optou pelo mais vibrante. Em 2014, Gabriel finalizou os trâmites que o tornaram um cidadão italiano em todos os aspectos e, consequentemente, elegível para representar o Belpaese esportivamente.

Convencido pelas qualidades do zagueiro de 28 anos, Prandelli o incluiu imediatamente na convocação para o amistoso contra a Espanha, em março de 2014, sendo apontado como um dos destaques da partida – apesar da derrota italiana pelo placar mínimo. A dois meses do início da Copa do Mundo, realizada no Brasil, ele voltou a ser chamado para fazer parte da equipe que enfrentou a Irlanda. Foi apenas um pequeno aperitivo, porque, em 1º de junho chegou a grande notícia: seu nome estava na lista dos 23 convocados para a competição. Bendito era o sangue que corria em suas veias, herdado do bisavô.

Prandelli não economizou no pacote defensivo, que contava com Ignazio Abate, Leonardo Bonucci, Giorgio Chiellini, Matteo Darmian, Mattia De Sciglio e Andrea Barzagli. Devido à condição física complicada do último dos citados, também levou Paletta – o 43º oriundo da história da seleção italiana, sendo o 21º de origem argentina. No Mundial, Gabriel fez apenas uma partida: a da estreia, ante a Inglaterra, em Manaus. O zagueiro começou como titular e assim permaneceu ao longo dos 90 minutos. A vitória por 2 a 1 seria a derradeira recordação do beque trajado com a camisa azul da Nazionale, eliminada na fase de grupos.

As despedidas foram constantes naquele período. Pouco tempo depois, no último dia da janela do mercado de inverno, em fevereiro de 2015, um endividado Parma aceitou a proposta de 3,5 milhões de euros do Milan, comandado por Filippo Inzaghi. Paletta, então, encerrou sua passagem pelos gialloblù após quatro temporadas e meia, nas quais somou 131 partidas e seis gols marcados. O clube emiliano terminaria a época rebaixado e falido – o que o obrigaria a ser refundado e recomeçar a sua caminhada na quarta divisão.

O beque teve desempenho regular na Atalanta e ganhou nova chance como titular do Milan (Getty)

Recuperado de uma lesão nas costas, Paletta assumiu a titularidade de um Milan com vários problemas defensivos, por conta de deficiências técnicas e questões físicas que impediram Adil Rami, Alex, Philippe Mexès, Daniele Bonera, Cristian Zaccardo, Cristián Zapata e Salvatore Bocchetti de se firmarem. O ítalo-argentino participou de 14 jogos em uma temporada medíocre dos rossoneri, concluída com um modestíssimo 10º lugar na Serie A.

Depois de assumir a calvície e cortar as madeixas, exibindo suas entradas, Paletta deixou o Milan temporariamente: em agosto, o clube acertou o empréstimo do defensor à Atalanta. Seu empresário havia admitido que a eventual contratação de Alessio Romagnoli, da Roma, complicaria a permanência no San Siro. Pelos orobici, Gabriel fez o básico e só não foi titular quando esteve lesionado. Assim, somou 24 atuações e registrou um gol na mediana campanha da Dea, que ficou no 13º lugar da Serie A.

Contrariando as expectativas, Paletta se tornou titular do Milan em seu retorno à capital da Lombardia. O ítalo-argentino desbancou Zapata e Gustavo Gómez, fez dupla com Romagnoli e disputou 32 partidas em 2016-17. Gabriel só não atuou mais vezes porque entrou para a história ao igualar o recorde de Luigi Apolloni como jogador mais vezes expulso numa edição da Serie A, com cinco cartões vermelhos, sendo dois deles sendo diretos.

Ao longo daquela temporada, Paletta foi titular na Supercopa Italiana, conquistada nos pênaltis sobre a Juventus, e ajudou o time de Vincenzo Montella a ser sexto colocado na Serie A, posição que resultou em vaga na Liga Europa e garantiu o retorno do clube a competições continentais após um jejum de três anos. Entretanto, isso não salvaguardou o seu lugar no onze inicial.

Em 2017-18, com a chegada de 11 novos jogadores na janela de verão, incluindo os zagueiros centrais Bonucci e Mateo Musacchio, as oportunidades de Paletta ficaram limitadas. Ele ficou fora dos planos de Montella, demitido em novembro, diante da inconstância dos resultados. Enquanto praticamente só treinava entre os profissionais, o defensor manteve ritmo de jogo na equipe juvenil, que tinha Gennaro Gattuso no comando técnico. Rino foi promovido a treinador do time principal e concedeu uma chance rara ao ítalo-argentino, permitindo-lhe jogar 90 minutos na fase de grupos da Europa League, contra o Rijeka, com o Milan já classificado. Seria a última de suas 47 aparições como rossonero.

Em seus últimos momentos no futebol, Paletta participou da ascensão do Monza à elite (Zonasport)

No momento que antecedia o fim das transferências de inverno, o ítalo-argentino rompeu seu vínculo com o Milan para se aventurar no futebol chinês, no Jiangsu Suning – cujos donos haviam comprado a Inter pouco antes. Curiosamente, o responsável por levá-lo à Ásia foi Sabatini, o mesmo que colocara entraves para sua chegada ao Palermo, anos antes. Por lá, Paletta foi treinado por Fabio Capello e teve colegas como os brasileiros Alex Teixeira, Miranda e Éder; este último, também oriundo.

Paletta ficou na China durante cerca de duas temporadas. Ele foi liberado em novembro de 2019 e, um mês depois, Adriano Galliani o persuadiu novamente, desta vez para firmar um contrato de três anos com o Monza, time da Serie C que representava a mais nova empreitada de Silvio Berlusconi em âmbito esportivo.

O ítalo-argentino chegou à Lombardia para reforçar uma equipe soberana na competição, com uma vantagem de 10 pontos sobre o vice-líder, na virada do turno. O acesso, que era apenas uma questão de tempo, se concretizou e o Monza encerrou um hiato de 19 anos longe da Serie B. O zagueiro eternizou seu nome na história do clube ao fazer parte da segunda promoção consecutiva, que marcou a ascensão inédita dos brianzoli ao topo da pirâmide do futebol italiano.

Uma lesão no joelho o privou de desfrutar uma última vez do alto nível da Serie A, algo que não acontecia desde o infeliz episódio em que ele igualou o recorde de expulsões. Paletta, contudo, ainda atuou uma vez em 2022-23, em fases preliminares da Coppa Italia. Sem espaço, pendurou as chuteiras após rescindir amigavelmente com o Monza, em fevereiro de 2023, aos 37 anos.

Paletta viveu uma trajetória repleta de altos e baixos, é verdade. Uma caminhada com muitas surpresas, também – afinal, começou como promessa num país e foi se consolidar em outro. No fim das contas, poucos jogadores terão o privilégio de contar aos seus netos que puderam defender as seleções da Argentina e da Itália em Copas do Mundo, ainda que de categorias distintas.

Gabriel Alejandro Paletta
Nascimento: 15 de fevereiro de 1986, em Longchamps, Argentina
Posição: zagueiro
Clubes: Banfield (2004-06), Liverpool (2006-07), Boca Juniors (2007-10), Parma (2010-15), Milan (2015 e 2016-18), Atalanta (2015-16), Jiangsu Suning (2018-19) e Monza (2019-23)
Títulos: Mundial Sub-20 (2005), Campeonato Argentino (2008; Apertura), Recopa Sul-Americana (2008), Supercopa Italiana (2016) e Serie C (2020)
Seleção italiana: 3 jogos

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