Existem jornadas de empresários que construíram grandes times de sucesso no futebol por um período considerável e histórias de executivos envolvidos em grandes esquemas fraudulentos. São poucas as vezes em que essas trajetórias se cruzam. Uma dessas raras conjunturas teve como protagonista o dirigente Calisto Tanzi, que levou o Parma ao céu e ao purgatório, além de ter atirado milhares de trabalhadores e investidores ao inferno. A Parmalat, sua empresa de laticínios, foi palco de um dos maiores escândalos financeiros das últimas décadas e, ao mesmo tempo, construiu equipes lendárias nos anos 1990, tanto na Itália quanto no Brasil.
Calisto Tanzi nasceu em Collecchio, uma pequena cidade perto de Parma, na Emília-Romanha. Depois de obter o diploma técnico de contabilidade, o jovem largou a universidade, aos 21 anos, para tocar o pequeno negócio familiar que começara com seu avô e xará. O objetivo era ajudar Melchiorre, seu pai, que estava doente, mas Calisto mudou a história da empresa, então conhecida como Dietalat.
Enquanto viajava à Suécia na década de 1960, Tanzi descobriu que o leite do país já era vendido em embalagens de papelão, no modelo Tetra Pak. Voltando à Itália, revolucionou o mercado local com a novidade, que permitia que o produto ficasse conservado por mais tempo. Já sob o nome Parmalat, a companhia emiliana deixou a concorrência comendo poeira: a sua receita cresceu 500% entre 1972 e 1980. Era um verdadeiro sucesso.
Nesse período, a Parmalat começou a expandir sua marca através do esporte. A multinacional patrocinou os esquiadores Gustav Thöni e Ingemar Stenmark, os pilotos de Fórmula 1 Niki Lauda e Nelson Piquet, a escuderia Brabham, o Real Madrid, o Avellino (da cidade do seu grande amigo Ciriaco De Mita, político da Democracia Cristã) e, claro, o Parma. Em 1987, Tanzi assinou um contrato com o presidente Ernesto Ceresini e a sua empresa de laticínios assumiu o posto do famoso presunto local na camisa gialloblù. Na época, os ducali estavam na Serie B e tinham Zdenek Zeman como técnico.
Porém, o mercado de laticínios, por sua natureza, tem uma margem muito pequena. Depois da chegada de novos competidores à cena, no meio dos anos 1980, a firma de Collecchio já demonstrava sinais claros de fraqueza. Só que isso não pegaria Tanzi de calças curtas: como todo bom empresário italiano de sucesso, ele já tinha feito seus contatos com políticos e pessoas influentes, com poder e dinheiro na Velha Bota.
Graças a sua estratégia de relações públicas, Calisto conseguiu colocar a Parmalat na bolsa de valores de forma indireta: a companhia estava endividada demais, então ele teve a ajuda de seus amigos para fazer uma negociata. Tanzi comprou uma empresa já cotada na bolsa, e com algum malabarismo contábil e vista grossa das agências reguladoras, que não se opuseram ao valor artificialmente inflado das ações, a sociedade de laticínios se tornou uma holding gigantesca e recebeu gordos empréstimos para ganhar fôlego.

O leite que virou ouro: Tanzi fez bilhões com a Parmalat e passou a investir fortuna no esporte (Gamma-Rapho/Getty)
Pouco depois da artimanha, fraudes e falsificações contábeis começaram a serem realizadas para aliviarem os balanços anuais, com faturas inexistentes e duplicadas feitas para que a razão entre ativos e passivos fosse mitigada, ao mesmo tempo que a manobra servia para acalmar os investidores. Na transição entre as décadas de 1980 e 1990, as suspeitas sobre falta de liquidez e crimes financeiros praticados pela direção da Parmalat já existiam, mas o escândalo ainda demoraria para eclodir.
Neste ínterim, Calisto Tanzi se tornou dono do Parma. Em fevereiro de 1990, Ceresini faleceu e Fulvio, seu irmão, se encarregou de passar o clube adiante. O proprietário da Parmalat se convenceu de que valeria a pena ir além do vínculo de patrocinador e adquirir a agremiação depois que os seus investimentos resultaram no primeiro acesso dos ducali à Serie A em toda a história. Após a promoção do time treinado por Nevio Scala ser confirmada, o magnata concluiu as tratativas.
Calisto jamais ocupou o cargo de presidente do Parma, apesar de ter sido o dono do clube. Numa primeira fase de sua gestão, entre 1990 e 1996, o empresário indicou Giorgio Pedraneschi para representá-lo no comando da agremiação e manteve Giambattista Pastorello, que chegara aos crociati em 1989, como executivo do futebol. Com estes dirigentes, o time adquiriu jogadores como Cláudio Taffarel, Georges Grün, Tomas Brolin, Antonio Benarrivo, Faustino Asprilla, Gianfranco Zola, Massimo Crippa, Roberto Néstor Sensini, Fernando Couto, Dino Baggio, Hristo Stoichkov, Fabio Cannavaro e Filippo Inzaghi.
Os grandes nomes levaram os ducali a anos dourados. Nesse período, o Parma de Tanzi sempre terminou a Serie A numa das seis primeiras posições, garantindo vagas em torneios continentais, e faturou quatro taças, sendo uma nacional – a da Coppa Italia – e três europeias (Recopa, Supercopa e Copa Uefa). Os parmenses ainda ficaram com vices da copa nacional, da Copa Uefa e da Supercopa Italiana. Era um passo enorme para uma agremiação que, antes da chegada da Parmalat, sequer havia superado a barreira da segunda divisão de seu país.
Em 1996, Calisto promoveu uma mudança radical no Parma. Scala, Pedraneschi e Pastorello deixaram o clube e a família passou a administrar a sociedade mais de perto, com a chegada de Stefano Tanzi, de apenas 27 anos, à presidência. Na primeira temporada do filho do empresário no comando dos crociati, a equipe emiliana foi treinada por Carlo Ancelotti, seu ex-jogador, e adquiriu nomes como Lilian Thuram, Zé Maria, Mario Stanic, Enrico Chiesa e Hernán Crespo, além de ter assistido à afirmação do prata da casa Gianluigi Buffon. Terminou como vice-campeã da Serie A – sua melhor colocação no campeonato – e conseguiu uma vaga na Champions League pela primeira vez.

Com títulos no Parma e investimentos em outros clubes, Tanzi passou a impressão de que seus negócios andavam de vento em popa (Ansa)
Nos anos sucessivos, já sem Ancelotti, o Parma faturou dois títulos da Coppa Italia, uma Copa Uefa e uma Supercopa Italiana – em 1998-99, sob as ordens de Alberto Malesani, conseguiu a dobradinha nas taças. Passaram pelo clube jogadores como Juan Sebastián Verón, Abel Balbo, Alain Boghossian, Diego Fuser, Márcio Amoroso, Paulo Sousa, Marco Di Vaio, Ariel Ortega, Johan Micoud, Patrick Mboma, Sérgio Conceição, Matías Almeyda, Júnior, Savo Milosevic, Sébastien Frey, Hidetoshi Nakata, Hakan Sükür, Adrian Mutu, Alberto Gilardino e Adriano.
Em paralelo ao investimento no Parma, a Parmalat também estreitou laços com outras equipes de futebol ao redor do mundo na década de 1990, através de patrocínios, de cogestão ou da própria aquisição de clubes. A multinacional de laticínios marcou presença em Portugal (Benfica), Argentina (Boca Juniors), Uruguai (Peñarol), Chile (Universidad Católica e Audax Italiano), México (Toros Neza), Nicarágua (fundou o já extinto Parmalat FC), Hungria (Fehérvár, que adotou o nome da empresa entre 1993 e 1996) e, claro, no Brasil.
Em terras brasileiras, a Parmalat teve a sua história entrelaçada com a de quatro clubes: Santa Cruz, Paulista, Juventude e Palmeiras. No time pernambucano, a relação foi apenas como patrocinadora, enquanto nos demais estabeleceu um vínculo mais forte. Entre 1998 e 2002, por exemplo, a equipe do interior de São Paulo foi rebatizada como Etti Jundiaí por conta de uma marca de extrato de tomate pertencente ao grupo italiano. Nesse período, o galo foi campeão da Série C e da Série A2 do estadual, além de ter sido quarto colocado na segundona nacional.
Nos clubes alviverdes, a empresa de Tanzi conseguiu evidência ainda maior. A Parmalat esteve ligada ao Juventude de 1994 a 2000, durante a fase mais gloriosa do time de Caxias do Sul: neste período, o Ju foi campeão gaúcho invicto, faturou a Série B e levantou a taça da Copa do Brasil. Entre 1992 e 2000, a multinacional também fez um gordo aporte financeiro no Palmeiras, contribuindo para que a equipe interrompesse uma sequência de 17 anos sem títulos. Na década em que a companhia de Collecchio foi parceira na gestão de seu futebol, o Verdão conquistou Copa Mercosul, Libertadores, Copa do Brasil, Copa dos Campeões, dois Torneios Rio-São Paulo, duas edições do Campeonato Brasileiro e três do Paulistão – com campanhas históricas sob o comando de Vanderlei Luxemburgo.
Algo muito comum nestes anos de investida da Parmalat sobre o futebol foi o trânsito de jogadores por clubes que recebiam verbas da empresa do ramo alimentício. O Parma, por exemplo, foi pivô de diversas tratativas ligadas a parceiros da firma de Collecchio: adquiriu Adaílton, do Juventude, e Júnior, Amaral e Alex do Palmeiras, ao passo que cedeu Zé Maria, Asprilla, Marco Osio e Amaral ao alviverde paulista; o volante brasileiro também foi emprestado ao Benfica em duas ocasiões. O colombiano Freddy Rincón foi outro que chegou à Serie A através da multinacional, sendo repassado ao Napoli como parte do negócio que levou Crippa e Zola aos crociati.

A partir de 1996, Calisto controlou o Parma mais de perto: Stefano, seu filho, foi empossado como presidente do clube (LaPresse)
Além dessas transações, o Parma de Tanzi também manteve um bom relacionamento com o Verona, que foi presidido por Pastorello, seu ex-diretor, entre 1997 e 2006. Os dois times negociaram muitos jogadores entre si ao longo do tempo em que as gestões coincidiram: os parmenses adquiriram Paolo Vanoli, Mutu, Frey, Gilardino, Martin Laursen, Anthony Seric e Gianluca Falsini junto aos mastini, ao passo que lhes cederam os atletas Luigi Apolloni, Emiliano Bonazzoli, Johnnier Montaño e Paolo Cannavaro.
Em 2001, a relação entre os clubes foi motivo de polêmica após os butei vencerem os crociati no Ennio Tardini, pela penúltima rodada da Serie A, e terem se salvado posteriormente do rebaixamento – relegando o Napoli neste ínterim. Em Nápoles, passou a ser muito comentada a hipótese de que Pastorello seria apenas um laranja de Tanzi no comando do Hellas e que a agremiação vêneta havia sido comprada com verba desviada da Parmalat.
Enquanto seus times somavam títulos e cifrões através do mercado de transferências, Tanzi acumulava dívidas sorrateiramente, sem ninguém tomar juízo. Para fazer o mundo empresarial crer que tudo continuava a correr bem, Calisto fundou uma agência de viagens e filiais de cunho financeiro em paraísos fiscais, passando de fraudes contábeis para ilícitos maiores, como lavagem de dinheiro, agiotagem e comunicação falsa aos investidores.
Na virada para o novo milênio, sob suspeita de alguns bancos, a Parmalat começou a ter mais problemas, até que, em 8 de dezembro de 2003, a empresa declarou que não tinha liquidez suficiente para honrar seus compromissos. Uma semana depois, todos os diretores se demitiram e o título da companhia na bolsa passou a despencar dia após dia. Em 19 de dezembro, o Bank of America comunicou ao Banco Central Italiano que uma suposta conta com 3,9 bilhões de euros em depósitos supostamente pertencente à Bonlat, uma offshore recém-criada nas Ilhas Cayman, foi inventada e nunca existiu: ou seja, a garantia de liquidez que era fornecida aos órgãos de fiscalização era falsa. Os ex-dirigentes da firma declararam que a documentação havia sido forjada com um scanner e uma máquina copiadora, equipamentos utilizados para que o logotipo do banco norte-americano fosse inserido na papelada.
As investigações posteriores mostraram que a Parmalat tinha um passivo de 14 bilhões de euros ao invés dos 5 declarados, sendo a maior parte desse montante relativa a obrigações com investidores que compraram seus títulos de dívida – justamente os que mais sofreram com a falência da empresa, já que foram diretamente enganados por Tanzi e receberam apenas parte do prometido depois de muito tempo. Após a bancarrota, a gigante dos laticínios foi desmembrada e vendida a concorrentes, produto por produto. A maior parte do que restou foi adquirida pelo grupo Lactalis, que manteve a marca de Collecchio viva.
Além disso, o Parma também pediu falência em 2004, passou por maus bocados nos anos seguintes e foi rebaixado pela primeira vez em 2008. Sem dúvidas, seus torcedores também foram prejudicados pelas fraudes de Calisto. Em 2010, a Promotoria de Nápoles resolveu abrir uma investigação sobre as relações entre os crociati e o Verona, no intuito de averiguar se Tanzi e Pastorello haviam burlado a norma da Federação Italiana de Futebol, que proíbe que uma mesma pessoa seja dona de mais de um clube numa mesma categoria, e se houve ilícitos financeiros. Antes de o processo chegar ao fim, Pastorello fez um acordo de delação premiada e confessou que várias das tratativas tiveram valor real adulterado, de modo que Parma e Parmalat haviam sofrido um rombo milionário. O ex-diretor das agremiações gialloblù teve, então, a pena suspensa pela colaboração.
Calisto Tanzi, por sua vez, foi detido pela primeira vez em 29 de dezembro de 2003, e libertado em setembro de 2004. Em 2009, o ex-dirigente da Parmalat teve a cara de pau de declarar à Justiça que não tinha nenhum bem em seu nome para que pudesse indenizar os prejudicados por suas ações e pagar multas devidas ao Estado. Em ação de busca e apreensão à sua casa, porém, a polícia deu de cara com uma pinacoteca com obras de pintores como Monet, Renoir, Van Gogh e Picasso – toda a coleção, composta por 55 quadros, foi avaliada em cerca de 100 milhões de euros. No ano seguinte, o empresário teve retiradas todas as medalhas de honra governamentais que havia recebido. Elas foram revogadas por “indignidade”.
O empresário respondeu em liberdade até maio de 2011, quando foi preso pela acusação de agiotagem. Por causa de sua idade e de algumas doenças, recebeu o benefício de cumprir a pena num complexo penal hospitalar. A última sentença de Tanzi foi proferida em 4 de março de 2014, no mesmo dia da morte de Giovanni, seu irmão e braço direito: seriam 17 anos e 5 meses de privação de liberdade.
A fábrica de leite se tornou a maior usina de dívidas da história do capitalismo europeu, graças às boas conexões de Tanzi, a sua desonestidade, a vista grossa de entidades governamentais e uma boa aparência para o público. O Parma passou de time modesto a esquadrão altamente competitivo e, enfim, a um clube com graves problemas financeiros nos anos seguintes. Os crociati amargaram uma nova falência (ainda mais traumática) em 2015 e tiveram de disputar até a Serie D neste novo período de sofrimento.
Tanzi escolheu o caminho mais garboso, sem respeitar os limites do próprio crescimento, e sentiu que poderia sempre voar perto demais do sol por ter, a seu lado, escudeiros que iriam lhe proteger. Mas ele se enganou: na Itália, todo mundo pula do carro vencedor quando ele para de vencer. Calisto esqueceu desta básica lição dos negócios e do esporte, onde não se pode vencer todas as batalhas. Dessa forma, viria a falecer praticamente sozinho em 1º de janeiro de 2022, aos 83 anos, devido ao agravamento de uma infecção pulmonar.