Jogos históricos

Em Dérbi de Milão com George Weah e Ronaldo em foco, Andriy Shevchenko estreou como algoz

Nenhuma edição de um clássico é apenas mais uma entre tantas. Cada jogo que mexe com os brios de torcidas arquirrivais é especial e não é diferente quando tratamos do Derby della Madonnina. No entanto, algumas partidas são mais singulares do que outras e, para a torcida do Milan, a vitória por 2 a 1 sobre a Inter, no primeiro turno da Serie A 1999-2000, é uma delas. Não só porque George Weah, no apagar das luzes, garantiu a virada sobre uma equipe comandada por Ronaldo. É que, naquela noite de 23 de outubro, Andriy Shevchenko estreava no duelo e, carrasco que viria a ser, já deixaria a sua marca no debute.

No verão europeu de 1999, Inter e Milan vinham de temporadas bastante distintas. Os nerazzurri, que haviam faturado a Copa Uefa e sido vice-campeões da Serie A em 1998, amargaram ano muito complicado e, após um oitavo lugar no Campeonato Italiano e uma temporada sem participar de torneios europeus como consequência, visavam a reconstrução. Os rossoneri, por sua vez, haviam faturado o 16º scudetto de sua história depois de duas campanhas horrorosas.

Em 1999-2000, o Derby della Madonnina teve embate de estilos entre Zaccheroni e Lippi (Allsport)

A Inter resolveu fazer uma aposta segura depois de um ano em que teve quatro técnicos – Luigi Simoni, Mircea Lucescu, Luciano Castellini e Roy Hodgson. O presidente Massimo Moratti escolheu Marcello Lippi, de passagem vencedora pela Juventus, para comandar uma equipe que não contaria mais com o lendário Giuseppe Bergomi, recém-aposentado, e que também se privara de outros nomes importantes, como Gianluca Pagliuca, Aron Winter, Zé Elias, Diego Simeone e Youri Djorkaeff. Em contrapartida, Angelo Peruzzi, Christian Panucci, Laurent Blanc, Luigi Di Biagio, Vladimir Jugovic, Álvaro Recoba e Christian Vieri aportaram no lado nerazzurro de Milão.

O Milan, ao contrário, perdeu poucas peças importantes: a rigor, as únicas saídas relevantes foram as de Roberto Donadoni, Christian Ziege e Ibrahim Ba. Por outro lado, o técnico Alberto Zaccheroni recebeu poucos reforços, mas alguns deles simplesmente virariam lendas do Diavolo. Naquela janela, chegaram Serginho, Gennaro Gattuso e Shevchenko, que realizara duas Champions League de altíssimo nível pelo Dynamo Kyiv. Em 1998-99, o ucraniano foi o artilheiro da competição e ajudou o seu time a ser semifinalista.

Com esse pano de fundo, Inter e Milan se enfrentaram na 7ª rodada da Serie A, quando os nerazzurri ocupavam a vice-liderança do campeonato, com 13 pontos, e os rossoneri estavam na quinta posição, com 10. Era, portanto, um confronto direto entre duas equipes cotadas como concorrentes ao título da competição.

De pênalti, o capitão Ronaldo abriu o placar para a Inter (AFP)

Antes de o jogo começar, os ultras fizeram a festa com os tradicionais mosaicos, sempre presentes nos clássicos de Milão. Ao mesmo tempo, em outros setores do estádio Giuseppe Meazza, torcedores acenderam sinalizadores na noite fria. O choque térmico fez efeito e, como é habitual em San Siro nas épocas do ano em que as temperaturas são mais baixas, como no outono, a névoa se espalhou. Mesmo com baixa visibilidade, por conta da fumaça, o árbitro Gennaro Borriello autorizou o início da partida.

A primeira grande chance do Derby della Madonnina veio com o Milan: Weah recebeu um belo passe em profundidade de Federico Giunti, mas chutou fraco e Peruzzi defendeu. Em seguida, Ronaldo dominou levantamento de Francesco Moriero e, do lado esquerdo do ataque, conseguiu esconder a bola de dois adversários. Após a finta, o brasileiro cruzou a meia altura, Christian Abbiati espalmou e Massimo Ambrosini completou, tirando o perigo de dentro da área.

Vivendo seu auge, o Fenômeno foi protagonista em outro lance que ocasionou um pênalti a favor da Inter – sofrido por ele mesmo. O camisa 9 recebeu ligação direta de Grigoris Georgatos no meio-campo e, de primeira, buscando Vieri. A intimidade entre os dois já dava indícios de que seria grande: o italiano segurou a bola e esperou o brasileiro atacar o espaço do lado esquerdo para devolvê-la. No momento em que dominou a pelota, Ronaldo foi derrubado na área por Luigi Sala, que chegou atrasado. Em cima do lance, Borriello assinalou a infração para os nerazzurri.

A alegria de Ronaldo naquele clássico, porém, duraria muito pouco (Allsport)

Revoltados com a marcação da penalidade, ultras do Milan atiraram sinalizadores da Curva Sud em direção ao gramado. Depois, outros torcedores repetiram o gesto, paralisando a partida até que todos os artefatos fossem retirados. A fumaça voltou a preencher o campo, mas – assim como no pontapé inicial – não se mostrou um problema para o árbitro, que autorizou a cobrança do pênalti. Ronaldo bateu rasteiro e no lado esquerdo, deslocando Abbiati e abrindo o placar para os mandantes, aos 20 minutos.

O capitão nerazzurro, contudo, mancharia a sua exibição pouco depois. Aos 30 minutos, Ronaldo recebeu lançamento, viu Roberto Ayala chegando para lhe marcar e não hesitou em dar uma cotovelada no argentino. Gattuso prontamente foi tirar satisfação com o brasileiro, que o encarou e em seguida saiu andando. A princípio, Borriello somente havia apitado a falta. Mas, com o auxílio do quarto árbitro, que até imitou o gesto agressivo do atacante ao denunciá-lo, aplicou-lhe o cartão vermelho direto.

A partida ficou ainda mais tensa e até os rossoneri estavam com os ânimos exaltados – como denunciou uma acalorada discussão entre um ainda garoto Ambrosini e o já veterano capitão Paolo Maldini. Na Inter, Lippi decidiu segurar o resultado e, para evitar as subidas de Serginho, sacou o ofensivo Moriero para colocar o lateral-direito Cyril Domoraud. Em seguida, o exaltado Ambrosini deu lugar a Demetrio Albertini, volante de maior qualidade no passe.

Cerca de 10 minutos depois de marcar o gol da Inter, Ronaldo agrediu Ayala e foi expulso (Allsport)

Sem o seu principal jogador, a Inter garantiu a vantagem na etapa inicial. No entanto, no segundo tempo, o Milan assumiu o controle do jogo e começou a valorizar a posse de bola. A primeira grande chance rossonera aconteceu com Oliver Bierhoff: o alemão recebeu por cima da linha de defesa, após troca de passes pelo meio, mas finalizou por cima do gol. Antes, numa jogada parecida, Vieri desperdiçara uma boa oportunidade para a Beneamata.

O Milan continuou explorando os flancos e os cruzamentos para a área, tendo em Serginho uma grande válvula de escape, porém não obteve resultado. De um lado, Lippi cogitava utilizar Roberto Baggio, que estava no banco de reservas, mas as questões físicas e as suas dúvidas sobre a dedicação do craque à fase defensiva lhe levaram a dar preferência a Iván Zamorano, que rendeu Jugovic. Já Zaccheroni lançou mão de Zvonimir Boban e Shevchenko. O ucraniano já tinha seis gols na Serie A – trajetória enriquecida por uma tripletta anotada num frenético 4 a 4 com a Lazio em Roma.

A entrada de Sheva, que substituiu Bierhoff, se mostrou uma boa escolha. Afinal, o ucraniano deu maior mobilidade ao ataque e, com apenas quatro minutos em campo, marcou o gol de empate. Aos 72, Serginho cruzou a bola na área e Shevchenko cabeceou no travessão. Na sobra, Domoraud tentou se antecipar a Sala e, todo desajeitado na dividida, chutou a pelota em cima do ucraniano, que anotou sem querer.

Camisas 9 em evidência: Ronaldo e Weah marcaram no clássico (AFP)

Dizem que a pelota procura o craque e essa jogada serviu para mostrar como Shevchenko seria um predestinado no clássico de Milão. Aquela foi apenas a primeira das 14 vezes que o o camisa 7 rossonero puniu a Inter no Derby della Madonnina, do qual é o maior artilheiro.

O gol de Sheva pode até não ter sido intencional, porém foi resultado da pressão que o Milan imprimiu. E o Diavolo continuou a atacar, sempre buscando o ucraniano: depois de novo cruzamento, o camisa 7 deu uma testada na bola e a fez passar perto do ângulo esquerdo de Peruzzi. Na sequência, outra cabeçada quase mudou os rumos da partida, só que a favor dos nerazzurri. Vieri levantou na medida para Zamorano, livre na segunda trave, mas Abbiati se esticou todo e deu um tapa na pelota. Assim, o chileno não conseguiu reajustar o corpo para direcioná-la para as redes.

O Milan continuou levando perigo e Weah, que não vivia uma noite positiva, novamente saiu cara a cara com Peruzzi quando o belo passe de Serginho rebateu na defesa e sobrou. O liberiano, contudo, parou no arqueiro e, no rebote, foi bloqueado por Javier Zanetti, que assumira a braçadeira de capitão nerazzurra.

Tanto Weah quanto Bierhoff fizeram partidas ruins, mas o liberiano teve a chance de se redimir (Allsport)

Aos 81 minutos, o clássico ganhou mais um componente: o restabelecimento da igualdade numérica. Georgatos lançou Vieri num contra-ataque rápido e, no mano a mano, Ayala chegou firme sobre o atacante, com um rapa bastante agressivo. Além da força excessiva utilizada, o árbitro entendeu que o argentino impediu uma situação clara de gol e lhe expulsou.

Com dez de cada lado, a Inter quase desempatou com Vieri, que recebeu lançamento, disputou com os marcadores e tocou para fora, na saída de Abbiati. O lance deixava claro que nenhum dos times queria o empate e assim seria até os últimos suspiros, como ratificou o Milan.

O relógio já marcava 90 minutos quando os rossoneri tiveram um escanteio para bater. Com toda sua classe, Boban levantou na área e Weah, que até então havia errado quase tudo que tentara, subiu mais do que Panucci para cabecear forte e realizar o gol da virada – em cima da linha, Georgatos tentou cortar, mas não conseguiu. Foi o último lance digno de nota numa partida cheia de reviravoltas, que teve o Milan como vencedor.

Shevchenko entrou no segundo tempo e começou a escrever sua história como grande algoz da Inter (Allsport)

O restante da temporada foi agridoce para a dupla de Milão, que perdeu forças na briga pelo scudetto – uma forte Lazio ficou com o caneco após tomá-lo da Juventus na última rodada. Sem grandes conquistas, nerazzurri e rossoneri se contentaram em ficar com vagas na Liga dos Campeões.

O Milan ficou apenas na terceira posição da Serie A, 11 pontos atrás da campeã, e se contentou com a artilharia de Shevchenko, que anotou 24 gols. Na Coppa Italia, o time não passou das quartas de final, enquanto o desempenho na Champions League foi vexaminoso: o Diavolo ficou em último num grupo com Chelsea, Hertha Berlim e Galatasaray. Já a Inter deu o troco no Derby della Madonnina do returno, com vitória por 2 a 1, e somou um pontinho a menos que a rival. No campeonato, a equipe de Lippi obteve o quarto posto após spareggio com o Parma e, na copa nacional, foi derrotada pela Lazio na decisão.

Inter 1-2 Milan

Inter: Peruzzi; Panucci, Blanc, Fresi; Moriero (Domoraud), Zanetti, Dabo (Cauet), Jugovic (Zamorano), Georgatos; Vieri, Ronaldo. Técnico: Marcello Lippi.
Milan: Abbiatti; Sala, Ayala, Maldini; Guly, Gattuso, Ambrosini (Albertini), Serginho; Giunti (Boban); Weah, Bierhoff (Shevchenko). Técnico: Alberto Zaccheroni.
Gols: Ronaldo (20′); Shevchenko (72′) e Weah (90′)
Cartões vermelhos: Ronaldo; Ayala
Árbitro: Gennaro Borriello (Itália)
Local e data: estádio Giuseppe Meazza, Milão (Itália), em 23 de outubro de 1999

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